A nova 'verdade inconveniente' | Op-ED no Valor

6 de dezembro de 2023

Este Op-ED foi originalmente publicado em português no Valor Econômico em 4 de dezembro de 2023 - o "Dia da Natureza" na COP 28.

Por Lise Tupiassu* e Marcelo Furtado**

Em 2006, o político e ativista ambiental Al Gore decidiu lançar luz sobre a falta de atenção dos governos e do setor privado em relação ao aquecimento global por meio do documentário intitulado "Uma Verdade Inconveniente". Sua intenção era criar um senso de urgência no mundo em relação aos riscos e às consequências do aumento das emissões de gases de efeito estufa.

Desde então, controvérsias, dúvidas, polêmicas e políticas públicas acrescentaram muitas novas camadas ao debate. Enquanto isso, as evidências científicas começaram a aumentar, e os modelos climáticos se tornaram mais robustos e precisos à medida que os eventos climáticos extremos se tornaram mais frequentes e intensos.

Atualmente, o que permanece nas mentes e nas mesas de negociação dos atores políticos, privados e do mercado, dos ativistas e da sociedade é o Acordo de Paris de 2015, que estabeleceu a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais (1800). Esse Acordo vinculativo logo foi reconhecido como um marco no processo de negociação multilateral: foi a primeira vez que todas as nações foram chamadas a estabelecer metas para combater as mudanças climáticas.

No entanto, o relatório "recorde quebrado" recentemente divulgado pelas Nações Unidas conclui que, na situação atual, mesmo que todas as ações e compromissos climáticos assumidos pelos países no âmbito do Acordo de Paris fossem implementados, o mundo ainda se encontraria em uma situação inaceitável neste século: 2,9°C mais quente do que os níveis pré-industriais. 

Esse aumento no aquecimento mudaria completamente o planeta como o conhecemos hoje. Ele causaria o deslocamento de populações inteiras, deixaria 40% das pessoas do mundo expostas a ondas de calor severas, aumentaria os níveis de insegurança alimentar e provavelmente levaria a Amazônia a um ponto crítico. 

A maior floresta tropical do mundo seria transformada em uma savana, o que resultaria em mudanças drásticas nos serviços ecossistêmicos. Isso significa não apenas mais emissões de carbono, mas também mudanças significativas no regime de chuvas no Brasil e na América do Sul, além de sérios danos à biodiversidade. A perda substancial de espécies e as mudanças na distribuição de agentes causadores de doenças levariam a um risco maior de surtos e pandemias, entre outras consequências. 

As repercussões sociais e econômicas seriam enormes. Em 2022, os desastres naturais foram responsáveis por uma perda econômica de US$ 313 bilhões em todo o mundo (4% a mais do que a média do século XXI), de acordo com o relatório Weather, Climate and Catastrophe Insight, produzido pela Aon. No Brasil, secas e enchentes causaram perdas de mais de US$ 5 bilhões no mesmo ano. 

Paradoxalmente, os países ricos em natureza são os que mais sofrem devido às suas vulnerabilidades em termos de infraestrutura e baixa capacidade de lidar com os impactos, deixando o mundo longe da justiça climática. 

Quase 20 anos após o documentário de Al Gore, e com a atenção do mundo atualmente voltada para a COP28 em Dubai, uma "nova verdade inconveniente" está surgindo: é praticamente impossível limitar o aquecimento global aos níveis propostos pelo Acordo de Paris. 

Portanto, é hora de planejar um futuro além de 1,5ºC, conforme argumenta o artigo de insight lançado em 20 de novembro pela NatureFinance, uma organização internacional sem fins lucrativos dedicada a alinhar as finanças globais com resultados equitativos, positivos para a natureza e resistentes ao clima. 

O documento, que argumenta que não temos mais tempo para soluções do tipo "business as usual", está enraizado em preocupações crescentes e debates contínuos de uma ampla rede de parceiros. A urgência e a escala das crises climática e natural exigem ações e abordagens inovadoras que, de acordo com as normas socioculturais e o status quo atuais, podem até ser caracterizadas como "impensáveis". Exemplos disso incluem a cidadania para bilhões de migrantes climáticos e novas estruturas regulatórias para bancos centrais. 

Portanto, temos uma janela de oportunidade para valorizar a natureza e desenvolver ferramentas para alocar recursos para seus administradores, sejam eles países ricos em natureza ou povos indígenas e comunidades locais. O risco de perdermos o momento é que ficaremos com um clima extremamente quente, sem a natureza ao nosso redor e sem oportunidades econômicas para financiar nossa adaptação. Precisamos analisar os serviços ecossistêmicos com a devida importância e urgência. A ciência já faz isso, e conseguimos um consenso político e processos consolidados para apoiar esse processo - seja por meio da Convenção sobre Biodiversidade ou da Convenção sobre o Clima. 

A economia global é 100% dependente da natureza e usa seus recursos como se fossem gratuitos e ilimitados. Precisamos redesenhar os mercados globais para garantir impactos positivos para o clima, a biodiversidade e as pessoas. 

Essa reformulação elevará a agenda da bioeconomia ao centro dos debates globais. O Brasil tem uma oportunidade única antes do G20 em 2024 e da COP30 em 2025, quando estaremos comemorando dez anos do Acordo de Paris, de valorizar soluções baseadas na natureza. 

É essencial trabalhar em uma governança robusta e eficaz que priorize os mercados da natureza. A grande oportunidade de realinhamento com base na valorização da economia da natureza virá com a contribuição de vários atores, inclusive os responsáveis pela manutenção dos ecossistemas, ou seja, as comunidades tradicionais e costeiras e os povos indígenas. 

É hora de a economia global parar de financiar a poluição e, em vez disso, redirecionar os recursos para soluções sustentáveis. Isso inclui investir adequadamente em países ricos em natureza para melhorar a infraestrutura essencial em face dos impactos climáticos, promovendo um compartilhamento justo de benefícios com governos subnacionais e populações locais. 

Ações focadas em créditos da natureza - incluindo créditos de carbono e biodiversidade, se incorporados em alta integridade, boa governança, transparência e rastreabilidade - e a renegociação de dívidas soberanas, usando indicadores socioambientais para avaliar o desempenho, podem contribuir para o cenário acima. 

Há também a demanda para combater as atividades ilegais e os crimes contra a natureza. Isso requer, entre outras coisas, o envolvimento de agentes do setor financeiro que devem parar de investir - mesmo que involuntariamente - em mercados ilegais, que devem ser abordados por ações de comando e controle.

Este momento crítico da história exige um apelo para o realinhamento das metas e um pensamento não convencional, a fim de alcançar uma ação climática realmente ambiciosa, inovadora e justa. 

*LiseTupiassu é professora da Universidade Federal do Pará e procuradora federal brasileira.

**MarceloFurtado é Diretor da NatureFinance e Chefe de Sustentabilidade da Itaúsa


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